quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

A Autogestão das Lutas Operárias - Seção 02 do Manifesto Autogestionário

Seção 02:








A Autogestão das Lutas Operárias





A luta operária é uma luta diária, cotidiana, que é travada contra a exploração e o trabalho alienado. Os trabalhadores não controlam seu trabalho, não se realizam nele, mas, pelo contrário, são coagidos, explorados, dominados. Assim, mesmo sem ter consciência do processo de exploração, o proletariado luta. A luta se manifesta sob as mais variadas formas, como absenteísmo, quebra de máquinas, reivindicações, etc. Esta luta ou é espontânea ou é moderada e controlada por entidades como sindicatos, partidos, Estado. Ela acompanha a história do capitalismo e nunca deixa de existir.
Em certos momentos históricos, há um avanço na luta operária: as lutas cotidianas se tornam lutas autônomas. Os proletários se libertam das instituições que dizem representá-los, radicalizam suas lutas, colocam reivindicações mais radicais. Esta autonomização do proletariado é uma nova etapa da luta que pode marcar a passagem para a terceira e fundamental fase: a das lutas autogestionárias. É nesta passagem que se vê o embrião da nova sociedade, um desenvolvimento da consciência revolucionária, um processo de auto-organização. E o movimento operário realiza isto tudo através do movimento grevista.
Da Greve Geral aos Conselhos Operários
As greves surgem e desaparecem. Elas são eleitorais, oportunistas, salariais, radicais. A greve é um fenômeno complexo e sua realização possui várias determinações. No entanto, deixando de lado o movimento grevista impulsionado pelas organizações burocráticas como sindicatos, partidos, etc., temos uma ação proletária que realiza uma mobilização e organização dos trabalhadores em determinada unidade de produção ou categoria profissional. O movimento grevista surge como uma forma de organização e despertar da consciência coletiva para as más condições de trabalho, os baixos salários, protesto social, entre outros elementos.
As diversas formas de paralisações da atividade laboral antes do advento da consolidação do capitalismo moderno são antecedentes históricos das greves operárias. As primeiras greves operárias – como não poderiam deixar de ser – provocavam uma violenta reação estatal. Na França, as primeiras grandes greves dos mineiros abriram brechas e em 1864 o direito de greve foi reconhecido. O movimento grevista na França foi bastante forte durante o século 19. Neste período, ocorriam greves corporativas, limitadas as determinadas categorias profissionais (na França, os mineiros se destacavam). As greves logo deixam de ser corporativas e passam a ser interprofissionais, sendo que estas passaram a ocorrer em território nacional até se transformar em greve geral. Esta passagem se deu pela solidariedade entre setores do proletariado ou por greves políticas, exigindo ou combatendo determinadas medidas políticas.
A idéia de greve geral já existia desde meados do século 19, mas somente no final desde século e início do século 20 que ela se tornaria uma prática política do movimento operário. As grandes greves deste período se espalharam pelo mundo, e tiveram ressonância e influência na história do movimento operário, tal como as greves na Bélgica, França e Rússia. No caso russo, durante a revolução de 1905, a emergência dos conselhos operários (sovietes) é resultado do movimento grevista. Este movimento continuou em escala mundial, atingindo inclusive países mesmo de capitalismo retardatário, tal como a Hungria e o Brasil.
A partir de 1910 uma nova onda de greves assola a Europa, gerando conselhos operários e acompanhando várias tentativas de revolução proletária, tal como no caso da Alemanha, Itália, Rússia, Hungria, entre outros países. As derrotas das tentativas de revolução proletária, a Segunda Guerra Mundial e a relativa estabilidade do capitalismo dos países imperialistas promoveram um refluxo do movimento grevista na Europa, mas manteve-se relativamente forte nos países de capitalismo subordinado. Nos anos 60 houve uma retomada do movimento grevista na Europa e em outros locais, mas ao mesmo tempo em que isto ocorria, a ofensiva da classe capitalista após os anos 70 e o desemprego crescente também promoveu um refluxo. A partir de então o movimento grevista passou a viver uma situação de fortalecimento e enfraquecimento, assumindo formas esporádicas e mais ou menos consolidadas dependendo da época e país.
A greve, enquanto mera paralisação das atividades, expressa uma luta contra o capital, já que compromete a extração de mais-valor. A extração do mais-valor é interrompida e por isso esta é a forma mais eficiente de pressão operária sobre o capital. É também por isso que as instituições que dizem representar os trabalhadores e, no fundo, representam o capital, já não incentivam o movimento grevista e quando podem evitam e desmobilizam as propostas e tentativas de greves. No entanto, o movimento grevista pode, uma vez desencadeado, se radicalizar e se tornar ainda mais perigoso para o capital. Trata-se da passagem para uma forma mais radical de greve, a greve de ocupação. Nesta, os trabalhadores não apenas paralisam as atividades, mas tomam conta das fábricas, das unidades de produção, impedindo qualquer forma de abdicação ao movimento grevista e reativação da produção. Os proletários realizam uma permanente mobilização, comunicação, o que permite um avanço da consciência e a constituição de novas relações sociais.
Este processo culmina com a greve de ocupação ativa, uma radicalização e aprofundamento da greve de ocupação, que marca já um passo rumo ao questionamento da propriedade privada, das relações de produção capitalistas. Este processo de greve de ocupação ativa exige, para significar um verdadeiro movimento revolucionário, a generalização para um conjunto significativo de unidades de produção. Ao ocorrer tal processo, ocorre, simultaneamente, uma forma superior de auto-organização, a formação dos conselhos de fábrica. Os conselhos de fábrica passam a gerir as fábricas e fazê-las funcionar de forma autogerida.
Esta ampliação da auto-organização dos trabalhadores se expande para outros setores da sociedade, tal como nos locais de moradia, estudo, etc. Surge, neste contexto, simultaneamente, os conselhos de bairros e outras formas de auto-organização, tal como os conselhos de segurança (milícias operárias). O processo de generalização da greve de ocupação ativa e da formação de conselhos de fábrica permite a articulação de diversas unidades produtivas em determinada cidade ou região, através de sua articulação com os conselhos de bairros e outros tipos de conselhos, criando os conselhos operários, a forma conselhista de autogestão social que realiza a articulação da sociedade em escala geral.

Estado e Burocracia: O Véu da Contra-Revolução
A burguesia é a classe dominante e se caracteriza por se apropriar do mais-valor produzido pelo proletariado. Assim, a classe capitalista, burguesa, e a classe operária, proletária, são as duas classes sociais fundamentais do capitalismo, as classes autênticas geradas pelo modo de produção capitalista. Porém, existem outras classes sociais, oriundas de modos de produção não-capitalistas ou das formas de regularização das relações sociais (doravante chamadas sinteticamente “formas sociais”). A manutenção da dominação burguesa tem como suporte o Estado capitalista, a principal forma de regularização das relações sociais no capitalismo. Porém, o Estado capitalista não é dirigido, na maioria dos casos, diretamente pela classe capitalista, e sim pela burocracia estatal.
O que é a burocracia? É uma classe auxiliar da burguesia. A classe capitalista ao drenar a produção de mais-valor acaba tendo que realizar a repartição do que foi extorquido do proletariado. Além dos gastos de produção e com os salários dos trabalhadores, a burguesia transfere parte do mais-valor para o Estado e para sustentar suas classes sociais auxiliares. Estas executam trabalho improdutivo, isto é, são trabalhadores assalariados improdutivos, não produzindo mais-valor e tendo sua renda adquirida através do processo de exploração do proletariado, através do salário pago pelo Estado ou por empresas capitalistas. A burocracia estatal, os agentes que fazem a máquina do Estado funcionar, bem como outros setores da burocracia (empresarial, partidária, sindical, etc.) é uma classe social auxiliar da burguesia, executando o papel de controlar o proletariado, amortecer os conflitos sociais e reproduzir a exploração.
A burocracia é uma classe que se julga neutra. Isto ocorre devido a ela se aproximar da classe capitalista pela sua cultura e rendimentos, embora se distinguindo por não ser proprietária dos meios de produção, bem como se aproxima do proletariado pela forma de sua remuneração, assalariada, mas se distingue dele por não ser um grupo dirigido e sim dirigente, além da diferença de cultura e rendimentos. A burocracia se divide em diversas frações e extratos e, devido a isso, algumas estão mais próximas do proletariado (renda mais baixa, situação social inferior) e outras mais próximas da burguesia, formando suas tendências mais radicais e moderadas, respectivamente. No entanto, devido seu caráter de classe, enquanto classe, a burocracia é contra-revolucionária, mesmo quando se alia ao proletariado, pois neste caso quer ser dirigente do processo revolucionário e assim reproduzir as relações dirigentes-dirigidos, tornando-se uma nova classe dominante ou se metamorfoseando em burguesia de Estado. A burocracia pode promover uma contra-revolução atuando “por cima” (a burocracia estatal utilizando a repressão, a cooptação, e outros mecanismos inibidores da ação revolucionária do proletariado) ou “por baixo” (os baixos extratos da burocracia, mais radical e próxima do proletariado, que é gerada por partidos, sindicatos, etc.) ao buscar dirigir o proletariado para tomar o poder estatal.
A burocracia estatal, a mais poderosa fração da burocracia, é formada pelos quadros dirigentes dos setores permanentes do Estado (exército, poder judiciário, aparato estatal) e provisórios (governo) e se coloca numa posição de neutralidade, reproduzindo a ideologia de que são “funcionários do universal”. Porém, o Estado capitalista, assim como o Estado em geral, é, por natureza, contra-revolucionário. A razão de ser do Estado é justamente a existência da luta de classes e por isso ele é parte desta luta, estando sempre do lado da classe dominante. A autonomização da burocracia estatal ou a tomada do poder do Estado por outros setores da burocracia (partidária, sindical, etc.) significam nada mais nada menos do que a realização da contra-revolução. Outros setores oriundos de outras classes sociais, uma vez tomando o poder estatal, metamorfoseiam-se em burocracia estatal e realizam a contra-revolução. Desta forma, a ideologia da conquista do poder estatal pelo proletariado é contra-revolucionária. O Estado não deve ser conquistado e sim destruído. A manutenção do Estado significa a permanência da dominação e da exploração. A abolição do Estado é condição de possibilidade da emancipação humana.
Das Lutas Espontâneas e Autônomas às Lutas Autogestionárias
A luta operária é uma luta cotidiana contra a burguesia. Tal luta se realiza no plano cultural, através das contradições e resistências; nas fábricas, através do absenteísmo, das diversas formas de manifestação das insatisfações, do desinteresse; nas instituições burguesas, através de sua recusa passiva ou ativa; em todos os momentos e locais. Mas esta é uma luta que é limitada, pois falta consciência revolucionária e auto-organização. Esta forma de luta não ultrapassa o poder burguês, apenas coloca alguns limites a ele, que, dependendo do contexto, da época e lugar, é algo bastante limitado. Ela não interfere na acumulação capitalista, não corroí o poder estatal, não questiona as relações de produção capitalistas diretamente, não constitui uma associação operária, etc. Apesar disso é uma forma de luta e resistência que acompanha toda a história do capitalismo e a cotidianidade na sociedade burguesa. As lutas espontâneas expressam o primeiro estágio das lutas operárias contra o capital, que ocorre na instância da produção e em todas as demais instâncias da vida social, mas que não ultrapassa a dominação capitalista. Historicamente, esta primeira e elementar fase da luta operária é substituída pelas lutas autônomas e, posteriormente, pelas lutas autogestionárias[1].
Esta fase de lutas espontâneas é superada quando há a passagem para formas de lutas mais radicais, as lutas autônomas. Durante as lutas autônomas, a classe operária toma a iniciativa em suas mãos e dispensa a mediação burocrática de partidos e sindicatos. Ela expressa uma radicalização do movimento operário. A força coletiva do proletariado se manifesta, criando formas coletivas de ação e consciência através da greve, do comitê de greve, do piquete, do panfleto. Porém, ainda não se trata de luta revolucionária, embora tenha avançado para uma forma mais consciente, coletiva. Já manifesta uma recusa do capital e da burocracia. A derrota, no entanto, marca a volta à normalidade capitalista. É uma ação revolucionária sem consciência revolucionária.
A fase das lutas autônomas é substituída por uma nova fase das lutas operárias, as lutas autogestionárias. Esta fase marca um avanço na ação, que se torna mais radical; na consciência, que se torna revolucionária; e na auto-organização, que se desenvolve, criando a associação operária sob a forma de conselhos, comunas, etc. A hegemonia revolucionária do proletariado se expande por toda a sociedade e o objetivo de transformar radicalmente as relações sociais se consolida nas mentes dos indivíduos das classes exploradas. A autogestão das lutas ocorre concomitantemente com a autogestão das fábricas, lojas, empresas, bairros, escolas, etc. A recusa do capital, do Estado, da burocracia partidária se torna uma realidade concreta.
A classe dominante busca manter a classe operária e os demais setores da sociedade ao nível das lutas espontâneas. Isto é reforçado por indivíduos que encontram dificuldades de ultrapassar esta fase, bem como forças políticas e a burocracia partidária/sindical que busca impedir a radicalização e autonomização do movimento operário para manter seu controle e poder.
Quando estas são substituídas pelas lutas autônomas, o capital busca frear, controlar, combater, cooptar, corromper. A burocracia sindical e partidária se opõe, tenta recuperar o controle. No plano cultural, tanto a classe dominante quanto a burocracia buscam frear o movimento operário e a consciência de indivíduos e grupos. É por isso que a tendência natural das lutas operárias é obstaculizada pela ação das classes opostas e que as lutas espontâneas não se transformam constantemente em lutas autônomas. Quando existe a ameaça de passagem de lutas autônomas para lutas autogestionárias, a classe capitalista e a burocracia buscam frear a passagem, através de ideologias, falsas promessas, concessões. Alguns indivíduos proletários e ativistas políticos não ultrapassam o nível das lutas autônomas, não buscam radicalizá-las e passam a idealizar esta fase ascendente, mas ainda limitada da luta operária, congelando-a, e, assim, contribuindo com as forças conservadoras.
Quando as lutas autônomas são substituídas pelas lutas autogestionárias, o conflito se torna mais grave, a guerra civil oculta se transforma visivelmente em guerra civil aberta e ambos os lados radicalizam suas ações e a vitória da classe capitalista ou da burocracia significa a contra-revolução, enquanto que a vitória da classe operária significa a instauração da autogestão social.



[1] Jensen, K. Os Limites do “Autonomismo”. Revista Ruptura. Ano 08, no 07, Agosto de 2001.

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