Resenha:
VIANA, Nildo. Manifesto Autogestionário. Rio de Janeiro: Achiamé, 2008
Manifesto Autogestionário:
um plágio criativo do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels
Lucas Maia Dos Santos∗
160 anos separam o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels do Manifesto
Autogestionário de Nildo Viana. O manifesto dos autores alemães é sem sombra de dúvidas
um pequeno texto que vale por obras inteiras. O texto de Nildo Viana é um plágio do velho
manifesto ou como o autor mesmo diz: “é um plágio de um plágio”, pois Marx e Engels são
acusados de plagiarem o Manifesto da Democracia de Victor Considerant. Marx e Engels
teriam plagiado Considerant? Nildo Viana afirma peremptoriamente que não, pois embora
haja algumas semelhanças formais em ambos os textos, as teses defendidas no Manifesto do
Partido Comunista não se encontram no Manifesto da Democracia.
Os prefácios feitos por Marx e Engels às sucessivas edições do Manifesto do Partido
Comunista demonstram uma preocupação dos autores em ressaltar que as teses ali expostas
não são um catecismo que deva ser seguido ad eternum. O revolucionário que de fato queira
compreender o processo histórico e de alguma maneira contribuir com a transformação social,
deve cotidianamente preocupar-se em analisar concretamente as condições históricas dadas.
Não basta apreender um conjunto de postulados e aplicá-los indefinidamente em qualquer
situação e contexto histórico. Não há nada mais idealista que tal procedimento.
O Manifesto da Liga dos Comunistas de 1848 é a expressão mais clara de uma nova
concepção da história, que considera os processos reais analisados de uma maneira concreta,
ou seja, que ambiciona encontrar as múltiplas determinações que explicam a realidade. Marx
e Engels demonstraram que a alavanca da história é a luta de classes. A luta entre senhores de
escravos e escravos no modo de produção escravista da antiguidade, a luta secular entre
senhores feudais e servos no modo de produção feudal e por último, a dramática guerra civil,
ora oculta ora declarada, entre burgueses e proletários trouxeram a humanidade aos nossos
dias.
O que o Manifesto do Partido Comunista representa é justamente um programa prático que
expressa uma concepção revolucionária. Neste texto está contido a concepção do
desenvolvimento histórico entendida de um ponto de vista materialista, a relação dos
comunistas com a classe operária e a posição dos comunistas diante das demais tendências
oposicionistas e da literatura socialista existente até aquele período. Para demonstrar como
entendem o processo histórico, afirmam: “A história de toda sociedade até nossos dias tem
sido a história das lutas de classes”. Isto coloca o proletariado na pauta das discussões, pois
sendo ele produto genuíno desta sociedade, a ele também cabe o papel histórico de abolição
das relações sociais existentes. É com base nisto que afirmam que o papel dos comunistas não
é o de dirigir a classe operária rumo à revolução, pois segundo entendem, os comunistas não
∗
Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Goiás e professor da rede municipal de ensino de Goiânia.
são um partido a parte, separado da classe operária, são simplesmente a fração mais resoluta
do proletariado. Apresentam em relação a este a vantagem de terem consciência dos fins da
luta ao passo que os proletários em geral só adquirem consciência destes fins durante o
processo de luta e principalmente nos momentos mais radicais desta verdadeira guerra civil –
a luta de classes. É por esta razão que terminam o texto com a célebre frase: “Proletários de
todo o mundo, uni-vos”!
Se em linhas gerais, o Manifesto de 1848 continua atualíssimo, pois a sociedade capitalista
ainda merece ser destruída, pois o proletariado ainda é o verdadeiro sujeito da revolução, pois
os comunistas continuam a existir etc., não é menos verdade que a sociedade transformou-se
consideravelmente de lá para cá. Sendo, portanto, coerente com os princípios do materialismo
histórico, nada mais adequado do que realizar uma atualização deste manifesto.
O materialismo histórico-dialético é um método vivo, posto que expressão concreta do
movimento do mundo. Aplicando-o ao estudo de realidades concretas, produzimos
interpretações teóricas destas realidades. Uma teoria é um conjunto de conceitos e categorias
articulados num processo coerente de explicação da realidade. A teoria visa explicar. Sendo
expressão explicativa do mundo, ela ajuda a contribuir com o processo de transformação e
também permite clarear melhor as nuances do processo revolucionário, sendo importante
arma no combate à contra-revolução (seja ela burocrática ou burguesa). Esta teoria deve ser
constantemente submetida à análise e reanálise, deve estar sempre com os olhos voltados para
o mundo, deve sempre explicá-lo. Se assim não o for, torna-se ideologia, ou seja, uma visão
invertida da realidade, uma falsa consciência.
O marxismo, de teoria revolucionária, tornou-se durante o século 20 um conjunto de
ideologias tão díspares e ao mesmo tempo tão distantes do marxismo que a utilização deste
termo para qualificá-lo enquanto tal ficou bastante problemática. Foi o que o que ocorreu com
a social democracia, com o leninismo e todas as suas variações (stalinismo, trotskismo,
maoísmo etc.), com a fusão do “marxismo” com ideologias científicas (estruturalismo,
fenomenologia etc.) dentre outras possibilidades de deformação. Por isto, a teoria
revolucionária, ou seja, o marxismo, deve explicar o mundo e por causa disto deve ser a
crítica radical de toda e qualquer ideologia já existente ou que venha a ser produzida.
Por isto, Nildo Viana se coloca nesta difícil e ao mesmo tempo instigante tarefa de “atualizar”
o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels. O desafio já começa com a preocupação
terminológica. O termo comunismo se prestou a tantas barbáries e tantas confusões na longa
história das lutas operárias do século 20 que de um conceito que visava e expressava o
processo revolucionário, tornou-se um grande monstro que justificava as mais gigantescas
burocracias (União Soviética, China, Cuba etc.). Tornou-se um conceito que estava articulado
a uma ideologia que utilizava uma fraseologia “marxista”, mas que na verdade era somente
uma forma de dominação da burocracia. A disseminação da idéia de comunismo como
vinculada aos partidos bolcheviques presta-se à edificação de grandes confusões: onde antes
tinha-se revolução, agora tem-se contra-revolução burocrática, onde antes tinha-se um
“sonhar para frente”, para utilizar expressão de Ernst Bloch, agora tem-se um eterno retorno
das sombras do passado. Assim, o Manifesto do Partido Comunista torna-se no seu plágio
contemporâneo o Manifesto Autogestionário. Mata-se dois coelhos com uma cajadada só:
abandona-se o uso da confusa expressão “comunismo” e da palavra “partido”. Embora Marx e
Engels desse um sentido diferente à palavra partido, ou seja, aqueles que tomam partido, que
tomam parte, que se posicionam como comunistas, com o desenvolvimento das burocracias
partidárias e da “democracia burguesa” torna-se um termo que presta-se à confusão e não à
explicação.
Formalmente, o Manifesto Autogestionário segue a mesma lógica do Manifesto do Partido
Comunista. Apresenta, na seção 1, a luta entre burgueses e proletários, denominando-a de “A
burguesia e o proletariado: a dinâmica da luta entre trabalho morto e trabalho vivo”. Esta é
a parte mais difícil de ser atualizada, pois trata da essência do modo de produção capitalista.
Por esta razão, as modificações que sofreu são mais formais e conjunturais. A preocupação
centra-se então em precisão terminológica. A burguesia, fulcro dominante da exploração
capitalista representa o trabalho morto, fruto da exploração, merecendo, portanto, ser
sumariamente abolida enquanto classe. O proletariado, por sua vez é o trabalho vivo, o centro
da criação e da criatividade. Por este motivo, a ele cabe a difícil tarefa de destruir o
capitalismo e construir a autogestão social.
Na seção 2, “A autogestão das lutas operárias”, é apresentada a pré-condição sem a qual
qualquer revolução proletária torna-se impossível: a autogestão das lutas. O que precisamente
significa isto? Nada mais nada menos que “a emancipação dos trabalhadores é obra dos
próprios trabalhadores” como disse Marx na introdução aos estatutos da Associação
Internacional dos Trabalhadores, a primeira Internacional. No período em que o Manifesto do
Partido Comunista foi redigido, a luta proletária era ainda inaugural, na Alemanha e em
alguns países, a burguesia ainda lutava contra os senhores feudais, o proletariado ainda não
tinha as ferramentas necessárias para derrubar a burguesia como um todo, mas mesmo assim,
as jornadas de fevereiro de 1848 assustaram a classe burguesa que se consolidava. 23 anos
depois, no ano de 1871, em Paris, o proletariado mostra sua verdadeira face à burguesia e a
classe dominante treme diante daquela insurreição. A Comuna de Paris, como a primeira
experiência histórica do proletariado enquanto classe para si, ou seja, que expressa seus
interesses de classe, levam Marx e Engels a fazer uma pequena “correção” em seu Manifesto.
No prefácio de 1872, afirmam que o proletariado não pode direcionar suas lutas para a
conquista do poder de estado, como haviam afirmado em 1848, mas sim que deve aboli-lo
imediatamente com a intenção de criar o autogoverno dos produtores. A Comuna de Paris
seria a forma finalmente encontrada de uma associação verdadeiramente livre de produtores.
Várias outras experiências se sucederam após a Comuna: as revoluções russas de 1905 e
1917, as tentativas de revolução na Alemanha, Itália, Hungria etc. no período de 1918 a 1923,
a tentativa de revolução na Hungria e França em 1956, o maio de 1968 francês, as greves
selvagens na Europa na década de 1970, a formação de Conselhos operários na Polônia em
1980 etc. Mais recentemente, algumas experiências limitadas na Argentina em 2001 com a
criação das assembléias de bairros e o movimento piquetero, a experiência de Oaxaca no
México etc. demonstram que as lutas operárias não acabaram, mas que pelo contrário,
expandiram-se para o mundo inteiro, posto que o capitalismo estende hoje seus tentáculos a
todos os lugares.
Além destas experiências históricas aqui citadas e inúmeras outras que não foram destacadas,
alia-se toda a produção cultural ligadas a elas. Destaco o Comunismo de Conselhos
desenvolvido por entre outros: Karl Korsch, Otho Rhüle, Anton Pannekoek, Herman Gorter,
etc. O Comunismo de Conselhos, que se consolida na segunda metade da década de 1920 é a
expressão teórica mais desenvolvida da classe operária até então. Desenvolveu até as últimas
conseqüências a idéia de classe operária para si, vendo nos conselhos operários a forma e o
princípio geral de organização das lutas operárias na sociedade capitalista bem como a forma
e o princípio de auto-organização da sociedade futura.
É com base nestas experiências históricas e, entre outras concepções, mas principalmente o
Comunismo de Conselhos, que Nildo Viana coloca no primeiro plano a necessidade de
autogestão das lutas operárias, pois é através delas que se criam as condições materiais de se
abolir as organizações burocráticas: partidos (todos), sindicatos (todos), estado (todos). Além
disso, os conselhos operários são a organização necessária para auto-educação do
proletariado, tanto no seu processo de luta contra a burguesia e a burocracia, mas
principalmente na sua maior tarefa, ou seja, reorganizar e gerir a futura sociedade.
A seção 3, “As tarefas dos militantes autogestionários – estratégia revolucionária”, é
exclusivamente dedicada ao papel dos militantes revolucionários. Os grupos e os militantes
revolucionários não são a “vanguarda” da classe operária. Aos grupos revolucionários não
compete dirigir a classe, determinar os rumos e os ritmos das atividades da classe. Também
não é uma ação revolucionária ficar nos limites das lutas reivindicativas do proletariado.
Assim, uma grande contribuição dos militantes é a luta cultural, ou seja, produção de uma
interpretação teórica profunda da realidade, crítica implacável de toda e qualquer ideologia,
ou seja, tudo aquilo que contribua com o avanço da consciência revolucionária.
A única estratégia verdadeiramente revolucionária dos militantes autogestionários é contribuir
com a auto-emancipação do proletariado: “O papel dos militantes autogestionários é,
envolvidos na dinâmica da luta operária, acelerar o processo revolucionário e reforçar as
condições necessárias para a vitória do proletariado. É necessário desencadear uma intensa
luta cultural e política com o objetivo de jogar as massas na luta direta pela sua emancipação e
criar a ação revolucionária das classes exploradas” (Viana, 2008, p. 35). Assim, ao militante
não cabe ficar sentado no sofá da sala assistindo TV, como também não é revolucionário ser
“vanguarda”, da mesma forma que é contra-revolucionário ficar no nível das lutas
espontâneas e autônomas. A única estratégia revolucionária é articular os fins da luta (a
autogestão social) com os meios (a autogestão das lutas). Esta estratégia visa avançar sempre
a luta dos estágios espontâneo e autônomo para uma luta autogestionária, o terceiro e o mais
radical estágio da luta operária.
Na seção 4, “Posição diante das demais tendências oposicionistas”, faz uma crítica às
concepções ditas de esquerda. Define como tendência oposicionista os grupos e indivíduos
que se opõem ao capitalismo ou a governos estabelecidos tanto no plano teórico quanto
prático. Cada uma das tendências tem uma base social definida: intelligentsia, burocracia,
jovens estudantes etc. podendo ter em uma tendência mais de uma destas. Critica-se o
pseudomarxismo acadêmico, o pseudomarxismo reformista, o pseudomarxismo bolchevista, o
sindicalismo, o “socialismo” individualista, o “socialismo” filosófico, o “socialismo”
romântico e o anarquismo dogmático. Com relação ao anarquismo, é necessário destacar que
existe o anarquismo revolucionário. Esta, contrariamente às suas variantes dogmáticas, aponta
para uma perspectiva verdadeiramente revolucionária. É uma doutrina com princípios
revolucionários, mas sem uma teoria da história e do capitalismo. Alguns anarquistas
assumem por isto a interpretação marxista do capitalismo e da história, ou seja, o
materialismo histórico-dialético.
A posição dos militantes autogestionários diante das tendências oposicionistas é variável.
Com relação às tendências academicistas, sindicalistas, reformistas e bolchevistas, a relação
deve ser de crítica, excetuando em casos raros e em conjunturas específicas nas quais seja
possível “uma ação conjunta por questões pontuais”. Com relação às individualistas,
românticas, filosóficas e dogmáticas, a relação deve ser de debate franco com o intuito de
demonstrar as conseqüências das posições e práticas destas concepções. Com relação ao
anarquismo revolucionário, a relação deve ser de ação conjunta e ajuda mútua. É necessário
que se diga que estamos falando de concepções e não de indivíduos ou organizações
específicas. Um indivíduo pode aderir a uma concepção leninista, por exemplo, mas isto não o
impede de em determinado contexto histórico mudar de posição. A falta de consciência da
existência de determinadas concepções mais radicais faz com que alguns indivíduos façam a
adesão a concepções reformistas ou ingênuas. Neste caso, a possibilidade de avançar para
concepções mais radicais é mais factível. Entretanto, em alguns indivíduos isto já é mais
problemático, pois a estrutura de personalidade de algumas pessoas que ao entrar numa dada
organização burocrática vêem nela a maneira necessária, pois isto reflete a sua própria
mentalidade burguesa e burocrática. Isto torna mais difícil sua mudança de concepção, pois
reflete seus valores, sentimentos, enfim, o conjunto de sua mentalidade. A crítica deve ser
direcionada às concepções e não a indivíduos considerados isoladamente. É claro que
determinados indivíduos de organizações burocráticas, principalmente seus chefes,
dificilmente mudarão de concepção. Neste caso, o combate deve ser franco e direto.
Encerra-se o manifesto com a seção 5, “A sociedade autogerida”. Nesta última parte, Nildo
Viana faz uma belíssima análise utópica. A utopia, no sentido em que Ernst Bloch no seu
livro O princípio Esperança emprega o termo, trata-se de uma visualização da tendência,
manifestando uma consciência antecipadora. Utopia, nestes temos, não é considerada como
sendo uma imagem ilusória de um lugar que não existe. Esta é uma utopia abstrata. Para
Bloch, a utopia deve ser concreta, ou seja, deve ser a visualização do futuro (consciência
antecipadora), mas considerando os processos de tendência. Trata-se na verdade do
rompimento com o saber meramente empírico; com esta cisão, a esperança entra como
categoria analítica da realidade presente. A história até Marx considerou somente o passado.
A partir do materialismo histórico-dialético, o futuro, a utopia concreta entra em cena na
leitura do mundo. Deste modo, as antevisões da sociedade do futuro, a sociedade autogerida,
não são abstrações sustentadas em castelos de carta, são na verdade a fuga do pensamento
para o futuro, a colocação da realidade no front entre o hoje e o amanhã, sendo este a
expressão de uma tendência profunda existente nesta sociedade.
A análise que o autor faz da sociedade autogerida é realizada a partir da observação das
experiências revolucionárias existentes até então e nas interpretações teóricas sobre estas
experiências. O modo de produção capitalista tem como sua essência a produção de maisvalia.
É a partir dela e para sua reprodução que tudo o mais se estrutura: mercado, estado,
dinheiro, individualismo, burocracia, burguesia-proletariado etc. A essência do modo de
produção comunista, pelo contrário, é a autogestão social. A partir da generalização da
autogestão através dos conselhos operários, que na sociedade autogerida deverá mudar de
nome, visto que não mais existirão operários, mas somente produtores livremente associados,
tudo o mais será re-estruturado. O estado, o mercado, o dinheiro e as classes sociais
sucumbirão. Um novo ser humano será construído, uma nova mentalidade, uma nova
sociabilidade, uma nova forma de associação entre as pessoas se erguerá.
O Manifesto Autogestionário é, portanto, uma leitura indispensável para os militantes
revolucionários hoje. Quem quiser ter acesso a uma obra de indiscutível radicalidade, de
nomeada coerência e inteira correspondência com o processo revolucionário deve ler este
manifesto. E, a partir daí, como provoca o autor, cada um deve se sentir tentado a escrever seu
próprio manifesto, pois isto é coerente com marxismo revolucionário, libertário. No final das
contas, este pequeno plágio é uma das obras mais originais dos últimos tempos.
TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM:
http://www.espacoacademico.com.br/092/92res_santos.pdf